O uso dos recursos do universo não pode ser separado do respeito pelas exigências morais. O domínio dado pelo Criador ao homem sobre os seres vivos e inanimados exige um respeito religioso pela integridade da criação
José Antonio Dominguez
Ao surgir das mãos de Deus, o homem era perfeitamente ordenado, criado à Sua “imagem e semelhança” (Gn 1, 26) e vivendo em harmonia com a natureza. Sendo rei da criação, era detentor do domínio sobre todos os seres, e isto se depreende da descrição do Gênesis: “E Deus os abençoou e disse: ‘Crescei e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a, e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves do céu, e sobre todos os animais que se movem sobre a terra'” (Gn 1, 28).
Depois, Deus, num gesto de confirmação da realeza que lhe tinha conferido, apresentou todos os animais a Adão, “para este ver como os havia de chamar; e todo nome que Adão pôs aos animais vivos, esse é o seu verdadeiro nome” (Gn 2, 19). Pois, o dar o nome a algo ou a alguém é sinal de dominação.
Ao concluir a Sua obra, no sexto dia, com a criação do homem “Deus viu todas as coisas que tinha feito, e eram muito boas” (Gn 1, 31). Ou seja, tudo estava perfeito, sendo o homem o ápice, no qual se resumia todo o universo: o mundo mineral, vegetal e animal, o espírito e a matéria.
O pecado destruiu a harmonia interna do homem
Porém, Adão, com sua ambição desmedida de querer ser igual a Deus – “sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal” (Gn 3, 5), disse o tentador a Eva – rompeu essa ordem inicial, segundo nos ensina o Catecismo:
“A harmonia na qual estavam, estabelecida graças à justiça original, está destruída; o domínio das faculdades espirituais da alma sobre o corpo é rompido; […] A harmonia com a criação está rompida: a criação visível tornou-se para o homem estranha e hostil. Por causa do homem, a criação está submetida à servidão da corrupção” (CIC, 400).
É de notar que até a própria criação material sofreu as conseqüências do pecado, de acordo com o ensinamento de São Paulo: “Pois sabemos que toda a criação geme e sofre como que dores de parto até o presente dia. Não só ela, mas também nós, que temos as primícias do Espírito, gememos em nós mesmos, aguardando a adoção, a redenção do nosso corpo” (Rm 8, 22-23).
O exemplo do dilúvio universal
Uma vez quebrada essa harmonia da criação, pelo pecado, encontra- se a explicação do rumo tomado pela humanidade: revoltando-se contra Deus e rompendo a ordem interna da alma, a conduta do homem afeta também os seres irracionais, criados para servi-lo. Ao longo da história, há momentos em que as conseqüências desse rompimento se tornam mais agudas, por exemplo, no episódio do dilúvio universal.
Servindo-se de uma linguagem antropomórfica, o autor sagrado deixa transparecer como as conseqüências da desordem moral atingem até a própria natureza:
“O Senhor viu que a maldade dos homens era grande na terra, e que todos os pensamentos de seu coração estavam continuamente voltados para o mal. O Senhor arrependeu-se de ter criado o homem na terra, e teve o coração ferido de íntima dor. E disse: ‘Exterminarei da superfície da terra o homem que criei, e com ele os animais, os répteis e as aves dos céus, porque eu me arrependo de os haver criado'” (Gn 6, 5-7).
O autor sagrado faz uma relação misteriosa entre a ordem da natureza e a ordem moral. O rompimento de uma se reflete na outra: “a maldade dos homens era grande, […] exterminarei da superfície da terra o homem que criei, e com ele os animais, os répteis e as aves dos céus”.
Uma vez que o pecado é do homem, por que atingir também os animais?
O texto sagrado nos mostra que as desordens morais da humanidade acabam afetando a boa ordem da própria natureza e ameaçando sua integridade, pois o homem e o universo formam um conjunto harmônico, que reflete na beleza de seu todo, como num mosaico, as infinitas perfeições de Deus. Qualquer falha, em alguma das partes, desfigura e prejudica o conjunto.
O mau uso dos recursos naturais acarreta conseqüências nefastas
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Dia da Árvore: jovens arautos participam das |
comemorações promovidas pela Secretária |
do Meio Ambiente de Mairiporã (SP), plan- |
tando mudas no Bosque da Amizade |
Oscar Macoto |
Na realidade, na grande maioria das situações de desordem moral, não é Deus que atua diretamente, mas são as próprias conseqüências do pecado, praticado pelo homem, no mau uso de seu livre arbítrio, que se voltam contra ele e o atingem, assim como à natureza. Não são as guerras, com seus efeitos devastadores, um exemplo disso? No mesmo sentido, também o uso inconsiderado dos recursos da natureza – o que constitui uma desordem moral – de que tanto se fala hoje, acaba tendo conseqüências nefastas para a humanidade.
O Papa Bento XVI tem chamado a atenção, mais recentemente, para a defesa da natureza, como por exemplo, no Ágora dos jovens italianos, em Loreto:
“Um dos campos em que parece urgente atuar é, sem dúvida, o da salvaguarda da criação. Às novas gerações é confiado o porvir do planeta, em que são evidentes os sinais de um desenvolvimento que nem sempre soube tutelar os delicados equilíbrios da natureza.
Antes que seja demasiado tarde, é preciso tomar decisões corajosas, que saibam criar de novo uma forte aliança entre o homem e a terra.
São necessários um sim decisivo à tutela da criação e um compromisso vigoroso em vista de inverter as tendências que correm o risco de levar a situações de degradação irreversível. Por isso, apreciei a iniciativa da Igreja italiana, de promover a sensibilidade sobre as problemáticas da salvaguarda da criação, proclamando um Dia Nacional que se celebra precisamente no dia 1º de setembro. No corrente ano, presta-se atenção sobretudo à água, um bem extremamente precioso que, se não for compartilhado de maneira eqüitativa e pacífica, infelizmente vai se tornar motivo de tensões duras e conflitos ásperos” (Homilia de 2/9/2007).
Mas a restauração dessa “aliança entre o homem e a terra”, de que fala tão oportunamente o Papa, só será possível pelo restabelecimento da aliança com Deus.
Respeito religioso pela integridade da Criação
Com efeito, ensina o Catecismo da Igreja Católica que “o sétimo mandamento [do Decálogo] ordena respeitar a integridade da criação. Os animais, como as plantas e os seres inanimados, estão naturalmente destinados ao bem comum da humanidade passada, presente e futura. O uso dos recursos minerais, vegetais e animais do universo não pode ser separado do respeito pelas exigências morais. O domínio dado pelo Criador ao homem sobre os seres inanimados e os seres vivos não é absoluto; é medido por meio da preocupação pela qualidade de vida do próximo, inclusive das gerações futuras; exige um respeito religioso pela integridade da criação” (CIC, 2415).
As conseqüências da inobservância das leis morais em relação à criação são já sentidas em alguma medida por toda a humanidade, que carrega sobre si todo o peso de séculos de revolução industrial, de progresso tecnológico e de consumismo desenfreado.
O Magistério da Igreja
A Igreja, sempre atenta aos problemas de seu tempo, tem feito ouvir com freqüência a sua voz, alertando para a crise que
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“E Deus viu que isso era bom”
Cada criatura possui sua bondade e sua perfeição
próprias. Para cada uma das obras dos “seis dias”
se diz: “E Deus viu que isto era bom”. “Pela própria
condição da criação, todas as coisas são dotadas
de fundamento próprio, verdade, bondade, leis e
ordens específicas.” As diferentes criaturas,
queridas em seu próprio ser, refletem, cada uma
a seu modo, um raio da sabedoria e da bondade
infinitas de Deus. É por isso que o homem deve
respeitar a bondade própria de cada criatura para
evitar um uso desordenado das coisas, que
menospreze o Criador e acarrete conseqüências
nefastas para os homens e seu meio ambiente.
(CIC, 339)
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vai crescendo nas relações entre o homem e o ambiente, conseqüência da crise entre o homem e seu Criador.
O Compêndio da Doutrina Social da Igreja aponta alguns aspectos da questão:
“A mensagem bíblica e o magistério eclesial constituem os pontos de referência-parâmetro para avaliar os problemas que se põem nas relações entre o homem e o ambiente . Na origem de tais problemas podese identificar a pretensão de exercitar um domínio incondicional sobre as coisas por parte do homem, um homem desatento às considerações de ordem moral que devem caracterizar cada atividade humana.
A tendência para a ‘exploração inconsiderada’ dos recursos da criação é o resultado de um longo processo histórico e cultural: ‘A época moderna registrou uma capacidade crescente de intervenção transformadora por parte do homem. O aspecto de conquista e de exploração dos recursos tornou-se predominante e invasivo, e hoje chega a ameaçar a própria capacidade acolhedora do ambiente: o ambiente como ‘recurso’ corre o perigo de ameaçar o ambiente como ‘casa’. Por causa dos poderosos meios de transformação, oferecidos pela civilização tecnológica, parece, às vezes, que o equilíbrio homem-ambiente tenha alcançado um ponto crítico'” (n. 461).
Saudades da integração com a natureza?
O habitante das sociedades industrializadas sente vivamente essa falta de equilíbrio, que se manifesta tantas vezes nas agressões da natureza, como também na doença do homem moderno, no estresse e no vazio espiritual. E a humanidade, que pela técnica julgou poder subjugar o universo, olha agora com certa saudade para trás, ansiosa por trocar uma vida excessivamente mecanizada e artificial por uma existência em que seja restabelecida a harmonia com a natureza.
Não refletirão também essas saudades o desejo de restaurar, de alguma forma, o convívio perdido com o Senhor Deus que “passeava pelo paraíso à hora da brisa, depois do meiodia” ? (Gn 3, 8).
(Revista Arautos do Evangelho, Nov/2007, n. 71, p. 16 à 19)
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